quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

UM BOINA VERDE, AS COBRAS E A PRÓXIMA MIJADA (primeira temporada, episódio 01)


– Existe esse troço de escrever pra determinada idade?, perguntou meu filho.


– Sei lá, respondi.


Acho que sei pra quem foi escrito On The Road.


Mas pra quem diabos foi escrito A Arte Zen da Manutenção de Motocicletas?


E Notas de um Velho Safado?



Agradecer por essa mijada. Ficar vivo pra mijar outra vez.

Às vezes, epifanias acontecem enquanto seguramos o pinto e olhamos pro fundo de uma privada qualquer. E de repente descobrimos que só nos resta sobreviver até a próxima mijada.

O resto? 

Bem, o resto é muito complicado.

Ainda mais com cobras rastejando na cabeça

Um cara que virou boina-verde, foi pro Vietnã e voltou de lá chapado de tudo até as orelhas foi quem primeiro me falou sobre as cobras.

Por milagre de Deus ou maldição do Demônio, tempos depois conseguiu ficar limpo. Mas vivia se queixando das cobras que rastejavam na sua cabeça.

Minha preocupação no momento, porém, não envolve cobras ou outros seres rastejantes, mas o fato de achar Ramones cada vez mais parecidos com Beach Boys.

Primeiros sinais de senilidade ou apenas efeito colateral da altitude do lugar onde estou em relação ao nível do mar do local onde vivia?

De qualquer forma, é bom estar vivo.
E sentir coisas.

Qualquer coisa, como disse o Keith Richards.

Cruzando a linha dos 70, concluiu também que é impossível amadurecer e, segundo ele, haverá bastante tempo para isso quando estivermos a sete palmos debaixo da terra, ou transformados em cinzas que se espalham por aí ao sabor do vento.

A questão é que faltavam poucas horas e eu não tinha ideia do que dizer pra aquelas pessoas. E elas tinham pagado pra ouvir.

####

A
final, é estupidez escrever sobre experiências? Qualquer experiência, em especial as que podem significar somente lixo pras outras pessoas, mas que foram importantes para nós?

Sim e não.

Escrever sobre uma experiência nos rouba o tempo que podíamos dedicar a viver novas experiências. Mas também pode nos ajudar a tatuar mais fundo, na mente e no corpo, a experiência sobre a qual escrevemos.

Como nunca se tem certeza do que vai acontecer, vamos deixar esse assunto quieto por enquanto e vamos direto ao ponto.

Ficamos velhos e não sabemos o que diabos fazer com isso, além de engolir certos remédios em certos horários, tentando evitar que as dores no corpo piorem e os lapsos de memória não sejam mais frequentes. Acima de tudo, torcemos pra ficar vivos o maior tempo possível sem mijar e cagar nas calças. E, com sorte, falando coisas que as pessoas mais ou menos entendam e que elas digam coisas que a gente mais ou menos entenda.

Escrevi aí na lousa: “Seguir o caminho, então desistir. Deixar para a vida enfim decidir.”

Bonito! Até rima.

Mas as coisas em geral não funcionam desse jeito.

Alguns de nós tentaram e alguns iluminados que sempre surgem aqui e ali até conseguiram alguma coisa. A maioria, porém, acabou desistindo, espontaneamente ou obrigada pelas circunstâncias adversas que começaram a tomar conta de suas vidas.

Mas alguns, por incrível que pareça, continuam tentando até hoje.

E, claro, existem aqueles que jamais se preocuparam com merdas desse tipo.

Aparentam viver permanentemente dopados por algum tipo de substância que os torna incapazes de, enquanto o efeito dessa droga for eficaz, sequer  imaginar que existam cobras rastejando na cabeça de alguém, muito menos nas suas.

Parecem sempre muito preocupados com inúmeras outras coisas, o que os mantém ocupadíssimos até a morte.

Como nunca lhes passou pela cabeça que possam existir outros tipos de espécimes humanos coabitando no mesmo planeta, quando são inevitavelmente confrontados com nossa existência, raramente conseguem entender do que estamos  falando. Parecem coisas obscuras, sem sentido, talvez alucinações e prováveis sintomas de uma doença perigosa da qual fogem como dizem que o Demônio foge da cruz.

E a questão é simples: cada um lida com as coisas do jeito que consegue.
A maioria das pessoas vira zumbis. Outras acabam se matando antes disso, por suicídio programado ou acidental. E outras ainda, como escaparam de virar zumbis e permanecem vivas, continuam, acreditem ou não, procurando a tal de brecha mágica.

Mesmo entre profetas e santos - dentro e fora dos hospícios -, há sérias dúvidas sobre a existência dessa brecha.

Seja como for, passar o tempo que nos resta na Terra procurando pela brecha não parece a pior das ideias, até porque pode nos salvar de virar zumbis, de planejar um suicídio ou de ser “vítimas” de um suicídio acidental por ingestão excessiva de substâncias que, aparentemente, nos levam mais perto de descobrir como funciona esse negócio de brecha mágica.

E para certas pessoas, talvez só reste mesmo essa busca como alternativa a virar zumbis (na verdade, eles não nos aceitariam jamais) ou planejar um suicídio ou sumir de repente num suicídio acidental.

Por isso, insisto: é preciso se concentrar em ficar vivo até a próxima mijada.
O resto é muito complicado
.
Obrigado a todos! Espero que nos reencontremos em breve.



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sábado, 20 de fevereiro de 2016

MIJANDO NO BECO, O ESPÍRITO SANTO E A ARTE DE FICAR INVISÍVEL (1ª temporada, episódio 02)

Ainda estava no palco e alguém avisou que tinha que ir até o saguão da entrada do auditório para autografar o livro.

Disse que antes precisava ir ao banheiro. Nos bastidores escuros, vi um luminoso vermelho dizendo SAÍDA. Escapei por ali.


Realmente desesperado pra mijar, fiz xixi no beco atrás da faculdade onde havia feito a palestra, o workshop ou sei lá o quê.



Aliviado por esvaziar a bexiga, feliz por ter conseguido fugir da sessão de autógrafos e com medo de ser flagrado mijando quando deveria estar assinando livros, comecei a lembrar da loucura que me levou àquela situação, numa sequência de coincidências estúpidas, fatos improváveis e mal entendidos sem sentido.


Um velho amigo, com quem não mantinha contato há anos, me localizou no esconderijo onde tentava me aperfeiçoar na arte de ficar invisível.


Por e-mail e depois por celular, primeiro pediu desculpas por invadir minha “caverna”, depois perguntou se eu não estaria interessado em levantar alguma grana para continuar a bancar financeiramente a minha jornada espiritual rumo à invisibilidade.


Meses atrás, um antigo colega de uma editora onde trabalhou comentou que havia recebido uma encomenda de uma igreja onde havia um pastor pentecostal prodígio, na faixa dos 11 ou 12 anos. O garoto começava a fazer sucesso nos programas de rádio e televisão que a igreja mantinha em várias emissoras espalhadas pelo país.


Uma espécie de conselho superior da igreja, após “consultar o Espírito Santo”, decidiu que era hora de transformar o pastor prodígio em um poderoso líder espiritual, capaz de enfrentar e superar o nível de popularidade dos mais famosos pastores midiáticos do momento.

Afinal, um pré-adolescente que tinha o poder de falar em nome do Espírito Santo era, sem dúvida, um apelo de marketing muito forte.

O tal conselho concluiu que, para completar a estratégia de criar seu superstar neopentecostal, o pastor-prodígio precisava lançar um livro.


Não podia ser um livro parecido com os que dezenas de pastores andavam lançando nos últimos tempos.


O conselho achava que tais livros eram todos iguais, muito impregnados de citações bíblicas e redundantes menções a Deus e Jesus Cristo, mas distanciados do cotidiano onde os fiéis lidavam com seus problemas materiais, sentimentais, sensoriais, etc., etc.


Outro problema é que esses livros usavam uma linguagem muito “litúrgica”, ou algo que o valha. Então, o “pulo do gato” para turbinar a carreira do pastor-mirim seria uma espécie de livro de autoajuda explícita, com o aspecto religioso colocado sutilmente em segundo plano.


 Pesquisas de instituições estrangeiras ligadas à igreja, além de algumas “revelações feitas diretamente pelo Espírito Santo”, haviam indicado que as pessoas estavam ansiando por um “neopentecostalismo de vanguarda”, seja lá o que isso significasse.


Haveria mensagens “evangelizadoras” baseadas em métodos de pensamento positivo simples, tipo os que apareciam nos calendários Seisho-No-Ie.


Seriam incluídas ainda algumas “citações científicas” coletadas de certas revistas femininas e programas vespertinos de TV, além de dicas para emagrecimento e outras “modernidades cotidianas”.


Isso traria o Evangelho para mais perto do dia a dia das pessoas. E tudo dito por um garoto iluminado que conversava diretamente com o Espírito Santo.


Resumindo, mais autoajuda secular de fácil assimilação e “menos Deus bíblico”, embora este continuasse sendo o “psicanalista supremo do Universo” e aquele que acabava realmente resolvendo as coisas, como os leitores acabariam descobrindo no final do livro.


Para fazer tudo isso acontecer, muito dinheiro estava sendo arrecadado para o projeto, por meio de generosas doações secretas de muitas pessoas importantes, no país e fora dele, cuja identidade ninguém seria capaz de imaginar.


O grande senão nessa história toda era que o colega de meu amigo estava se separando da esposa e, por causa disso, pretendia sumir para um lugar bem distante, tipo Austrália ou Groelândia. Sendo assim, não poderia aceitar a encomenda dos pastores, até porque já havia pedido demissão da editora que recebera a encomenda.


Encharcado de vinho, depois de ouvir a história de seu colega e de tentar consolá-lo um pouco a respeito da separação, meu amigo disse de repente: “Tenho o cara ideal para fazer esse troço funcionar. Só preciso saber se ainda está vivo e onde diabo se meteu.”


Os motivos que o fizeram lembrar do meu nome são até hoje um mistério, para ele e para mim.

De qualquer forma, meu amigo saiu do restaurante com a ideia fixa de que precisava me localizar de qualquer maneira. Eu era “o cara” certo pra escrever o livro de autoajuda da porra do pastor prodígio.

Como eu não estava vivendo no Polo Norte nem no Tibete, nem na Austrália nem na Groelândia, não foi tão difícil assim seguir meu rastro, após mandar alguns e-mails e dar alguns telefonemas.

No nosso primeiro contato telefônico, achei que ele estivesse chapado acima do normal ou tivesse virado o filme de vez, como se dizia antigamente quando alguém entrava em surto agudo.
Mas ele começou a contar que, no dia seguinte ao porre de vinho no jantar, ainda tremendo da ressaca, ligou para seu antigo colega de editora e perguntou como poderia conversar com os pastores.

Dois dias depois, durante uma reunião marcada em “caráter de urgência”, convenceu-os de que ele era a pessoa indicada para por em prática o projeto do pastor-mirim superstar. Afinal, já havia editado uma série de livros de autoajuda de sucesso “escritos” por pessoas famosas.  Mais do que isso, conhecia o “cara” ideal para tocar a coisa.


Seja por interferência do Espírito Santo, por mera lógica mercadológica ou por algum acidente cósmico, os pastores compraram a ideia.


Só não entendia por que ele tinha lembrado de mim para fazer aquele tipo de trabalho.

Já havia escrito, por iniciativa própria ou sob encomenda, a respeito de inúmeros assuntos bizarros, mas jamais tinha feito qualquer coisa parecida com a que meu amigo estava propondo.

Além disso, havia pulado fora do circuito há tempos, avisando a quem interessasse que ia “mudar de vida”. Para os iniciados, isso significava que não planejava escrever mais porra nenhuma sobre porra nenhuma pelo resto da vida.


Contudo, irônica – ou tragicamente ou acidentalmente ou por obra do Espírito Santo, dependendo do ponto de vista -, eu me encontrava numa daquelas fases cíclicas de achar que minha passagem pelo planeta estava acabando de forma completamente irrelevante.



Estava de saco mais do que cheio de procurar a brecha e não encontrar porra de brecha nenhuma.

Além disso, meu dinheiro estava há tempos na reserva, quer dizer, o meu carro estava cada vez arriscado de parar na estrada, de noite e sem nenhuma alternativa de socorro, privado ou público.
Vai daí, resolvi continuar escutando o que meu amigo dizia ao telefone.

Aos poucos, comecei a imaginar que não devia ser assim tão difícil fazer o que ele estava propondo.

Na pior das hipóteses, eu acabaria desistindo no meio do caminho (uma das minhas especialidades em projetos mais ou menos longos) e voltaria pra minha caverna.

Ou, quem sabe, poderia, durante o processo, acabar virando o filme de vez, possibilidade que as cobras na cabeça sempre deixavam em aberto.


Sem deixar claro se aceitava ou não, comecei a colocar algumas condições absurdas que classifiquei como “inegociáveis”.


Não teria, em hipótese alguma, contato pessoal com o tal pastor-prodígio ou com qualquer outro representante formal ou informal da igreja deles. Os contatos, se necessários, só aconteceriam por escrito, via internet e sempre intermediados por meu amigo.


Meu amigo respondeu que eles iam achar esse tipo de coisa muito estranha, mas tentaria convencê-los de que esse tipo de “esquisitice” fazia parte do meu “sistema de trabalho” e era essencial para o bom andamento do projeto.



Despedimo-nos e ele ficou de entrar em contato novamente quando e se os detalhes avançassem.

domingo, 7 de fevereiro de 2016

BOLHAS DE SABÃO ESPIRRANDO MERDA PARA TODOS OS LADOS (1ª temporada, episódio 03)

Dias atrás, disse a pessoas como vocês que cada um lida com as coisas do jeito de pode, que consegue.

Uns se dão melhor, outros, mais ou menos. E há sempre os que arrebentam a cara quando, certos de que descobriram a brecha, se lançam contra uma parede dura como rocha.

Ah, e lógico, existem sempre também os que nunca se preocuparam com porra de brecha nenhuma.
Mas não é sobre estes últimos que eu quero falar.

Quero falar sobre aqueles que não têm outra alternativa a não ser buscar a brecha.



Não fazem isso porque querem, gostam ou escolheram essa meta na vida. Fazem porque essa é a única maneira de sobreviverem, que dizer, a única maneira de continuarem caminhando sobre o planeta fingindo ser iguais a todo mundo. 

Se parassem de se ocupar em buscar a tal brecha, certamente entrariam em colapso total, explodiriam como bolhas de sabão, espirrando merda para todos os lados.

É a busca, a esperança de que a brecha realmente exista e possa ser encontrada que os mantém razoavelmente sociáveis, escapando do risco de serem linchados ou encarcerados em manicômios ou prisões.

Mas, de repente ou aos poucos, você percebe que já não resta muito tempo. É provável que você morra antes de encontrar a brecha.

Resumindo, você toma consciência de que está ficando velho.

E cada um lida com as coisas do jeito que consegue.

Alguns fazem seguidas plásticas no rosto e no corpo. Outros ingerem substâncias que prometem um pouco mais de tempo extra de vida. Outros se convertem a alguma espécie de culto. Enfim, cada um, dependendo de suas condições financeiras, físicas e mentais, procura um caminho que atrase ao máximo o trajeto pelo túnel sem luz no final.

E, claro, nunca podemos esquecer que existem os que não se preocupam com isso e que apenas compram um túmulo e esperam a sua hora chegar pacificamente.



Se há uma coisa que admiro em Mick Jagger é a sua coragem de deixar a pele do rosto cair à vontade, deixar as rugas criarem seus rastros na face. E logo ele, cuja beleza, tanto quanto a voz, foram e são fundamentais para continuar atuando em sua profissão.



Não sei direito por que incluí Jagger nessa conversa, mas acho que no fundo tem tudo a ver com o que estamos discutindo aqui.

Ou seja, o tempo não espera por ninguém e você não pode ter sempre tudo o que você quer, mas, às vezes, se você tentar bastante, você pode conseguir o que você precisa.
Obrigado pela atenção e até qualquer dia.



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Anos atrás, eu teria pelo menos tentado começar a ler as 63 páginas e meia que os membros do conselho da igreja me encaminharam, estabelecendo rumos e diretrizes do livro que, segundo eles, faria de seu pupilo prodígio o maior líder neopentecostal do país, e talvez do mundo.

Lógico que, como sempre fazia nesses casos, eu abandonaria a coisa depois da décima ou décima-primeira página e acabaria escrevendo o que eu achava que os caras esperavam que eu escrevesse. E em geral dava certo.

Só que, ao pegar todo aquele calhamaço, eu só consegui passar os olhos em diagonal pelas primeiras duas ou três páginas e senti que, se insistisse numa leitura mais aprofundada, ia acabar tendo uma convulsão semelhante às que eu tinha durante os períodos de abstinência do álcool e das drogas.

Escrever aquele negócio, contudo, abria a possibilidade concreta de levantar uma grana suficiente para me manter por mais alguns anos escondido na minha caverna.

Voltei a pegar a brochura, mas a sensação de uma convulsão de aproximando fez com que eu largasse os papéis em cima da mesa e saísse para caminhar na chuva fina que caía lá fora.
Ao voltar, sentei no PC sem me secar, procurei uma estação de blues no smartphone, coloquei os fones e pousei os dedos no teclado.

Já que estava lidando com essas coisas de pastores, milagres, revelações e não sei mais o que, por que não tentar deixar que o tal do Espírito Santo me ditasse o que eu devia escrever?
E, acima de tudo, eu precisava da porra do dinheiro para prosseguir na minha peregrinação rumo à invisibilidade, seja lá o que isso significasse.

Tipo uma semana depois meu amigo me ligou para saber como andavam “as coisas”.
Respondi que há dois dias o Espírito Santo tinha interrompido a comunicação e eu estava esperando um novo contato para poder prosseguir.

Ele disse que estava falando sério e queria saber como ia a porra do livro.

Expliquei que eu ainda estava “pegando a mão”, mas a coisa devia começar a deslanchar logo, pelo menos era o que eu esperava.

Ele perguntou se não havia pelo menos umas folhas pros caras verem.

Afirmei que, em hipótese alguma, ia mandar “a coisa” em pedaços. Só mostraria o livro pros pastores por inteiro, acabado. Antes disso eu não ia mandar merda nenhuma pra eles.
Meu amigo começou a gaguejar, dizendo que o pessoal não ia aceitar isso. Eles não iam continuar financiando um projeto no escuro.

 Tá certo que os caras eram estranhos, mas não malucos.

Sugeri que ele dissesse aos pastores que eles não precisavam se preocupar porque aquele era meu “método de trabalho” usual e sempre dava certo.

Além disso, o Espírito Santo, desde que comecei a escrever o livro, andava se comunicando diretamente comigo e sua opinião também era a de que o livro só deveria ser conhecido por mais pessoas - além dele, Espírito, e de mim - depois que estivesse pronto.

A mensagem precisava ser passada de uma só vez, para que surtisse o efeito desejado. Enfim, os pastores deveriam “ter fé” em que tudo sairia como o pretendido.

Meu amigo ficou um longo período em silencio do outro lado da linha e desligou o celular.

Mais ou menos três semanas depois, o celular voltou a tocar e meu amigo disse:
“Olhe, não me pergunte como. Não sei se fui eu, se foi a sua história maluca sobre o Espírito Santo ou se foi o próprio, o Espírito, quero dizer, mas a questão é que consegui enrolar o pessoal até agora. Mas assim você vai acabar fodedo com tudo, porra. Escreve uma merda qualquer e manda pra eles, só pra ganhar tempo.”

- O livro tá pronto, eu respondi.

- Pronto?, ele gaguejou, como sempre fazia quando seu nível de estresse e pressão sanguínea ultrapassava limites perigosos.´

- Vou mandar por e-mail daqui a pouco.
- Sério?

- Sério.

Como da vez anterior, ele ficou em silêncio por um logo tempo e desligou.


quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

PORRA, E A BRECHA? FECHOU DE NOVO! (1ª temporada, episódio 04)

Um dia então aprendemos – por meio do budismo ou de qualquer outro método que defenda a mesma hipótese – que nada ao nosso redor ou dentro de nós, inclusive nós mesmos, é permanente.

Tudo está sempre mudando, seja pela transformação das aparências, seja porque as coisas e pessoas simplesmente somem das nossas vidas.

Pronto! Descobrimos a brecha.

Tudo muda sempre, nada existe para sempre, tudo está sempre mudando.

Então só existe o presente. Vai daí que o lance é estar sempre no presente. 

Eureca!

Só que então você também descobre que não consegue fazer essa “mágica” por vontade própria ou quando quer.

No máximo, o seu satori meia-boca - de que a jogada é viver apenas no presente e assim a brecha se abriria - vai ter ajudar a perceber com mais facilidade aqueles momentos em que você sente que está vivendo exatamente no agora e, no instante em que você saca isso, você leva um chute na bunda que te joga pra fora do presente outra vez. 

Porra, e a brecha?

Fechou de novo.

Bem, mas pelo menos você teve uma prova, digamos, concreta de que a brecha existe. Afinal, se fechou, é porque estava aberta. E nada que não existe é capaz de abrir e fechar.

Ok, você chegou à conclusão de que a brecha existe de verdade, mas percebê-la e atravessá-la não depende de você – pelo menos da parte racional do seu cérebro. Outra coisa que você também deduziu é que, quando por acaso você a atravessa, é impossível você se manter o tempo todo do “lado de lá.”

Você avançou alguns centímetros, mas a montanha sagrada continua a milhares de quilômetros de distância.

E logo, logo, você está se questionando: “Eu estive mesmo do outro lado da brecha ou foi só mais uma alucinação? E, se foi alucinação, então não há nenhuma prova de que a brecha realmente existe.

Fodeu de novo. Teu satori meia-boca se esvaiu como fumaça de incenso barato.


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Tive a impressão de ter ouvido alguém gritar “babaca” enquanto deixava o palco, mas logo em tornei invisível nos bastidores e sumi tranquilamente pela sempre salvadora porta dos fundos.

A questão é que, por mais que seja um pé no saco, eu preciso voltar a falar sobre o livro dos pastores.

Afinal, é para isso que estamos aqui, ou não?
Bem, já não tenho muita certeza.

Em todo o caso, vamos tentar resumir a história. E já aviso que, quando tento resumir uma história, ela costuma ficar mais longa do que a original. Mas vamos lá.

Os pastores da chefia da tal igreja, sabe-se lá por que, adoraram o livro. 
Chegaram a dizer a meu amigo que, com certeza, eu não estava mentindo quando disse que vinha sendo iluminado pelo Espírito Santo enquanto escrevia. 

Ironicamente, o pastor prodígio que assinaria a autoria do livro não gostou do que eu tinha escrito, principalmente porque não entendeu praticamente nada do que lera. 

Isso, porém, não fazia a mínima diferença, já que o garoto sempre obedecia cegamente os planos traçados pelo conselho superior dos pastores, mesmo que não compreendesse direito no que eles o estavam metendo. 

Confesso que fiquei meio assustado com a facilidade e rapidez com que tudo se resolveu.

Claro que não estava começando a acreditar na história que eu inventei sobre a comunicação direta com o Espírito Santo. Mas não há como negar que tudo aconteceu de uma forma bastante estranha. 

Na verdade, desde que sentara todo encharcado no computador depois daquele meu passeio na chuva, parece que perdi a noção do tempo. Acredito que tenha passado três ou quatro dias e noites digitando 

palavras atrás de palavras, só me levantando para is ao banheiro que ficava do lado de fora da cabana, e tomar água na torneira do quintal. 

Mas, mesmo mijando, cagando ou molhando a garganta seca, minha 
cabeça continuava juntando palavras que, logo depois, eram digitadas na tela, como se um fluxo contínuo de narrativa tivesse tomado totalmente o controle da minha mente e do meu corpo.

Quando meu amigo ligou pela primeira vez, não tive coragem de dizer o que estava acontecendo, já que ele não levaria a sério e ficaria seriamente preocupado com minha precária sanidade. 

Então inventei a história de que ainda estava “pegando a mão” etc., etc. Só quando ele ligou três semanas depois, resolvi contar que o livro já estava pronto. Aliás, fora escrito – ou vomitado – em três ou quatro dias e noites, em meio a mijadas, cagadas e longa chupadas na torneira do quintal.

Contudo, não fiquei preocupado com isso por muito tempo.

Recebi dois ou três cheques pelo correio e logo estava de volta a minha caverna, fazendo desenhos imaginários nas paredes para que as futuras gerações tivessem uma ideia de que tipo de gente tinha habitado o planeta naqueles tempos.

sábado, 30 de janeiro de 2016

"MUITO ALÉM DO MAR VERMELHO!" (1ª temporada, episódio 05)

Passaram-se vários meses sem que eu tivesse qualquer pensamento a respeito de espíritos, demônios, revelações esotéricas ou surtos de escrita automática debruçado sobre o teclado do computador. 


Um dia recebi pelo correio um pacote com um exemplar de um livro chamado “Muito Além do Mar Vermelho”. Junto, vinha um bilhete do meu amigo, contando que a coisa estava vendendo que nem água, e não só entre os membros da igreja, mas também entre muita gente que nem religiosa era. 

Claro que o fato de um vídeo promocional ter viralizado na internet ajudou bastante. 

O vídeo trazia depoimentos de dois jogadores de futebol famosos, uma dupla sertaneja, um filósofo ateu e de uma cantora de funk, explicando como o “Muito Além do Mar Vermelho” tinha mudado as suas vidas. 



A princípio, era ideia incluir também uma ex-garota de programa que virou atriz, mas parece que não chegaram a um acordo quanto ao cachê. 

No final do bilhete, que mais parecia uma carta devido a sua extensão, meu amigo mandava eu me preparar porque os pastores já estavam decididos a lançar uma continuação do primeiro livro. 

Já havia até um título escolhido para a nova obra: “Muito Além do Mar Vermelho e Seguindo Adiante.”

Como tinha escrito o agora batizado “Muito Além do Mar Vermelho” o mais rápido que consegui e, principalmente, sem prestar o mínimo de atenção que fosse ao que estava sendo escrito, não me lembrava de quase nada do que escrevera.

Não cheguei nem mesmo a fazer uma revisão superficial no texto antes de encaminhá-lo para os pastores, um requisito profissional mínimo que todos os escritores fantasmas – até os mais irresponsáveis – devem obedecer antes de entregar qualquer trabalho a quem o encomendou.

Debitei mais essa “negligência profissional” a minha preguiça ancestral crônica, que havia se tornando ainda mais radical depois que me recolhi a minha caverna para fazer desenhos imaginários nas paredes.

Vai daí que, quando abri o “Muito Além do Mar Vermelho” e comecei a lê-lo, parecia que estava tomando contato pela primeira vez com um livro escrito por outra pessoa, a qual, eu, obviamente, desconhecia por completo.

Esse distanciamento esquizofrênico em relação ao texto me deixou curioso em saber de que diabos realmente tratava a porra do livro de um pastor-prodígio que pretendia conquistar um mundo de seguidores através de palavras impressas dentro de coloridas e desenhadas capas duras.


-Mais ou menos uma semana depois, mandei um e-mail para o meu amigo que intermediava as negociações com os homens do Espírito Santo.

“Não vou fazer a continuação do porra do Mar Vermelho. Comecei a escrever um livro. Vai chamar “Sobre o Livro dos Pastores”. É uma reunião de reflexões que estou fazendo  a respeito das coisas que o pastor-mirim disse no livro dele que eu escrevi.

“As primeiras 20 páginas já estão on line em um blog hospedado num servidor da Romênia desde ontem. 

Uns amigos disfuncionais – antigamente eram chamados de hackers, é esse o termo ainda? -, eles bolaram um esquema maluco que dispara centenas de pop ups piratas que invadem os principais portais do país, e alguns até do exterior.
“O poup up é um selinho, dizendo ‘Sobre o Livro dos Pastores – Leia já antes e que seja tarde!’.

“Os caras dos portais vão arrumar, logicamente, um jeito de bloquear o troço, mas, até lá, vamos ver se acontece algo interessante.
“Abraços, velho!

“PS - O nome do blog é “Escrachando o Demônio Com Um Chute nos Bagos”. Dá uma olhada e veja o que você acha.”


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Se eu tivesse ideia da encrenca em que estava me metendo, teria pelo menos usado um pseudônimo. 

A questão é que a merda estava feita. Não demorou muito para que meu nome começasse a aparecer em alguns blogs meio obscuros como o autor de é “Escrachando o Demônio Com Um Chute Nos Bagos”
Alguns desses blogs (os menos obscuros) eram publicados em portais. 

Um dia, provavelmente devido a um surto agudo de falta de imaginação de um pauteiro do caderno de cultura de um de um jornal relativamente conhecido, um repórter foi encarregado de fuçar esse “negócio” de “Demônio escrachado” que algumas pessoas andavam comentando na redação e nas redes sociais. 

Na sequência, uma daquelas emissoras de TV, sempre a ponto de decretar falência por falta de anunciantes e dívidas trabalhistas, também entrou umas de fazer uma matéria sobre o assunto na editoria de variedades de um telejornal regional. 

Passadas algumas semanas, uma repórter de um portal alternativo me ligou perguntando se eu não estava a fim de contar “toda a história”.

Perguntei de que porra de história ela estava falando. Ela me respondeu que já havia um considerável número de pessoas nas tais redes sociais dizendo que o é “Escrachando o Demônio Com Um Chute nos Bagos” era uma “resposta” ao best-seller instantâneo “Muito Além do Mar Vermelho”.

Afirmei a ela que esse pessoal só podia estar pirado. Garanti que jamais havido lido esse tal “Muito Além do Mar Vermelho” e nem sabia do que se tratava. Na verdade, eu estava andava realmente postando de maneira homeopática na internet trechos de um livro que eu andava escrevendo e que, por acaso, tinha o título provisório de “Escrachando o Demônio Com Um Chute Nos Bagos”. 

Se o livro que havia começado a escrever via internet tinha alguma semelhança com o tal de “Muito Além do Mar Vermelho”, seja lá em que sentido fosse, tudo não passava de mera coincidência, pois, como já havia dito, nunca li o livro que a repórter estava citando.

De repente, a moça mudou o tom da voz e perguntou se, por acaso, tudo o que eu estava falando para ela não seria também parte da “história”.
- Mas, afinal, que história é essa que você está falando?

- A história do “Escrachando o Demônio”. 

- Não estou entendendo sobre o que você está falando.

- Bom, é normal que você, a essa altura, queira esconder o jogo, mas o que eu quero saber é se isto que nós estamos conversando agora também vai entrar na história.

 Quer dizer, ainda não existe uma história acabada, a história ainda está sendo escrita e esta conversa que estamos tendo agora, por telefone, também fará parte da história? E por que estão achando semelhança entre o livro que você está escrevendo e o best-seller escrito por um garoto que diz falar todo o dia diretamente com o Espírito Santo? 
Desliguei o telefone sem responder nada e fui dar uma volta na chuva fina que tinha voltado a cair lá fora. Escorreguei na grama e fiquei estirado de barriga pra cima, sentindo os pingos batendo suavemente na minha cara.

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

EM CANA OU NO HOSPÍCIO (1ª temporada, episódio 06)

Já repararam como somos absurdos?

Volta e meia, por questão de segundos, percebemos isso.

Como se, de repente, nossa origem alienígena dos mandasse o recado de que, por mais que tentemos, não conseguiremos nos adaptar totalmente ao mundo em que fomos jogados.

E, em certos momentos, essa nossa incapacidade fica mais clara, a ponto de pessoas próximas ficarem se perguntando se não há algo de errado conosco, alguma disfunção ainda não catalogada.


Enfim, como diziam os ancestrais, “damos bandeira”, e agradecemos por não haver nenhum tira ou psiquiatra por perto para nos colocar em cana ou em um hospício.

Mas vamos por enquanto deixar essas teorias interplanetárias de lado e pensar um pouco mais concretamente sobre o absurdo que às vezes sacamos que somos.

Claro, tem muita gente que nunca teve nem terá essa sensação.

Contudo, estamos conversando aqui sobre as pessoas que, de vez em quando, sentem que, se a vida é absurda, elas são mais absurdas ainda tentando a todo custo dar algum sentido a suas vidas absurdas.

Vejam bem, não estou falando daquele tipo de absurdo de que a gente nasce, cresce, envelhece e morre. Refiro-me ao absurdo maior ainda que é o modo como lidamos com esse ciclo natural de acontecimentos, comuns a toda a humanidade.

Por mais que nos esforcemos, sempre fazemos alguma coisa estúpida, absurda em relação a determinado assunto com o qual estamos lidando. O problema é que só percebemos isso depois que a cagada  foi feita e não há como voltar atrás.

Embora não seja médico, psiquiatra, guru, padre, pastor nem nenhum tipo dessas coisas, é comum as pessoas me perguntarem se esse troço tem cura.

Sempre respondo que não faço ideia, mas que me esforço para preservar – e como mais frequência ainda, resgatar – a sensação de esperança de que isso é possível, mesmo que dure apenas pequenos momentos que, quem sabe, possam ir se ampliando, até nos permitir encontrar a brecha, a verdadeira brecha.


A esta altura, vocês devem – ou sinceramente deveriam – estar se perguntando que merda estão fazendo aqui, com as suas bundas esquentando suas cadeiras e vice-versa, ouvindo um sujeito que confessa que sabe,tanto como escapar pela brecha quanto vocês. Ou seja, praticamente porra nenhuma.´

Bem, essa resposta só vocês poderão dar.

De minha parte, diria que os três patetas já estão mortos. Mas eu continuo vivo.

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Nunca entendi direito a reação automática das pessoas aplaudirem no exato momento em que alguém acaba de falar. Acho que é impossível que elas consigam digerir e menos ainda refletir sobre tanta coisa que foi dita. Em todo o caso, foi isso que aconteceu quando agradeci a atenção e me despedi.

Quando escapava pelos bastidores, fiquei esperando que alguém gritasse de novo “babaca”, mas desta vez ouvi: “Não deviam deixar esse cara solto.”

Talvez o autor da frase tivesse razão, mas eu estava ocupado demais começando a ficar invisível e sumindo nas ruas.

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Atendi o celular e ouvi: “Os caras querem que você faça seu preço?”

- O quê?

- Quanto você quer pra fazer a continuação da porra do livro?

- Agora estou mergulhado no “Escrachando o Demônio”. Arruma outro cara pra fazer a continuação. Tá cheio de sujeito aí que consegue ser tão ou mais idiota do que eu.

- Eles querem você.  Disseram que você sabe traduzir e simplificar a “linguagem do Espírito Santo”, coisas do tipo. Pior, começaram a usar o “Mar Vermelho” nos cultos. Quase não citam a Bíblia. E o tal pastor prodígio que eles queriam promover teve um AVC punk e agora tá quietinho e mudinho numa cadeira de rodas.

- Por que os caras não fazem aqueles milagres lá deles e resolvem isso?

- Eles dizem que não dá pra fazer milagre porque o garoto não quer. Na visão deles, foi o próprio garoto que quis ficar fodido assim.

- O quê?
- É, diz que assim ele ouve melhor a voz do Espírito Santo.

- Mas, se ele tá mudo, como é que os outros pastores sabem que ele virou abóbora por vontade própria?

- Ele se comunica mentalmente com os outros pastores. Foi ele que disse que só você podia fazer a continuação do livro dele. Mas não foi por isso que eu te liguei.

- Ligou pra quê então?

- Aquele teu negócio do “Escrachando” tá crescendo, já percebeu? Uma porção de acessos por dia.
- Eu desisti desse troço há uns dois meses. Não linquei mais o blogue.

- Por que você desistiu?

- Perdi o tesão. Agora tenho passado a maior parte dos dias atirado bolinha pra dois de meus cachorros viciados nesse tipo de coisa. Não sobra muito tempo pra mais nada.

- Você acha que pode retomar o blogue?

- Pra quê? Meus cachorros ficariam confusos.

- Reserva um período específico pra isso, quer dizer, pra atirar bolinha. Assim eles acabam se acostumando que é só naquela hora que você vai atirar bolinha e nos resto do tempo você escreve no blogue.

- Sabe, a verdade é que eu tô achando mais divertido atirar bolinha do que escrever no blogue.

- Tudo bem, mas a gente podia tentar um lance. A gente faz um acordo lá com teus amiguinhos 
hackers, eles dão uma ressuscitada no blogue e depois a gente junta os textos e edita um livro. Monta outro esqueminha pra esquentar o livro on line e por aí vai. Se você fizer mais uns, sei lá, 20, 30 posts, acho que já dá pra fechar um livro. O que você acha?

- Não sei, preciso pensar um pouco.  Conversar com a minha mulher, meus cachorros, pesar os prós e os contras, essas coisas.

- Pensa aí, mas esse troço do “Fodendo o Demônio”, acho que pode dar o maior pé, se a gente fizer a coisa direitinho.

- Não é “Fodendo”. É “Escrachando”.
- Que seja. Pensa aí.

- E a porra da continuação do livro dos pastores?

- Ah, fodam-se os pastores. Eles que resolvam o problema deles lá. Vamos partir pra outra, livro, DVD, palestras e assim por diante. Quem sabe até um programa na TV a cabo.

- Por que essa mudança súbita de ideia? Cansou de ganhar dinheiro com os pastores?

- Já te disse, fodam-se os pastores.

Foram suas últimas palavras, após ficar um longo período em silencio e desligar o telefone.


Era totalmente inútil tentar imaginar por que meu amigo havia mudado tão subitamente de ideia quanto a fazer uma continuação do “Além do Mar Vermelho”.

Quem o conhecia bem sabia que sua cabeça funcionava como aquelas birutas de aeroporto. Além disso, era vítima de crises de tédio ancestrais sempre que ficava alguns meses tratando de um mesmo assunto.

Quando esse tédio atávico batia, ele, primeiro, começava a se chapar pesado com a droga de sua preferência no momento. Daí, era obrigado a entrar pra uma reabilitação, período em que ficava maquinando o que poderia fazer quando estivesse fora da clínica.

Talvez tudo isso estivesse interligado, mas pra mim não tinha importância agora.

Minha cabeça estava fixada sobre aquilo que falou a respeito de um livro, DVD, palestras e assim por diante. Inclusive, o que mais me preocupava era o “assim por diante”, porque podia significar coisas mais loucas ainda do que tudo o que ele falou, incluindo o programa de TV a cabo.

Para quem estava interessado em se tornar invisível, aquela conversa toda soava como um grande pesadelo.

Mas, ao mesmo tempo, a ideia de soltar um livro chamado “Escrachando o Demônio com um Chute nos Bagos”, independente do que estivesse escrito nele, reascendeu em mim algo que eu sinceramente pensava estar definitivamente morto e enterrado:

A irresistível vontade de fazer algo completamente irresponsável sem nenhum objetivo específico, como quando somos moleques e atiramos uma pedra numa vitrine apenas para ouvir o barulho que o vidro faz quando se estilhaça.


Passei as semanas seguintes alternando o lançamento de bolinhas pra meus cachorros com períodos sentado ao computador, escrevendo o que me vinha à cabeça sobre as diversas formas imagináveis e possíveis de acertar os bagos do Demônio.

Quando o fluxo travava, eu ia dar uma volta da chuva que caía fora da cabana.

Nunca cheguei a reparar que sempre que eu travava, chovia e eu saía pra caminhar.
Voltava encharcado, sentava ao teclado e o fluxo voltava.

Seja qual fosse o motivo, funcionava, pra azar dos bagos do Demônio.

Entrei num ritmo quase frenético e às vezes chegava a postar dois ou três textos num só dia no blogue, principalmente em dia de chuva.

Aliás, nos dias de chuva também não atirava bolinhas pros cachorros.

É bem provável que isso tudo estivesse relacionado, mas preferi não pensar sobre o assunto e usar o que me restava de energia para continuar fodendo os bagos do Demônio.

Um dia, meu amigo mandou um e-mail com uma única palavra: PARA, assim mesmo, em letras maiúsculas.

Ele devia ter dito isso há duas ou três semanas. Agora não dava pra parar sem concluir aquilo tudo. Não fazia a mínima ideia do que exatamente precisava ser concluído. Mas tinha certeza de que isso era extremamente necessário.

A gente não chuta os bagos do Demônio e simplesmente vira as costas.



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