quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

O ATOR TRAFICANTE E O NOBRE DE DUBAI (1ª temporada, episódio 10)

Nos tempos em que andou tentado dar pequenos golpes em estúdios de pequeno e médio porte em Los Angeles, meu amigo conhecera um ator que se tornara seu amigo. Hoje, pra sobreviver, ele vendia crack e “outras coisas de qualidade garantida” nas esquinas da cidade.

Se ainda conseguisse localizar o ator-traficante, ele seria a pessoal ideal.

Ideal pra quê? Bem, pra voltar a atuar, agora no papel de um nobre da corte de Dubai, que, por se sentir desprestigiado nas bilionárias transações do governo com enormes corporações multinacionais, queria sua parte em toda essa putaria financeira nebulosa.

Primeiro, no entanto, era preciso convencer Speed a se expor novamente àqueles políticos da pasta. Ele se reaproximaria de alguma maneira do grupo e daria sinais de que tinha uma informação que “valia ouro”, obtida através de uma seguríssima fonte da Polícia Federal, a quem fizera, no passado, um inestimável favor de caráter familiar.

Não sei se todo o piloto de helicóptero clandestino tem a falta de um ou vários parafusos na cabeça, devido ao fato de aceitarem enfrentar riscos fatais, tanto no ar quando em terra. Seja como for, na cabeça de Speed deviam faltar não apenas vários desses parafusos, mas também algumas engrenagens importantes ao instinto de sobrevivência da raça humana.

Achou o plano “perfeito” e disse que já estava dentro.

Localizar o ator-aposentado-traficante não foi tão difícil assim. Meu amigo tinha muitos contatos em Los Angeles e não somente em pequenos e médios estúdios.

Costumava invadir festas de celebridades em busca de alguma chance de arrumar trabalho e, principalmente, para se chapar, mas acabava saindo dessas festas, quase sempre, sem condições de dirigir.

Em algumas dessas ocasiões, pegou caronas com motoristas de algumas dessas celebridades, que, por estarem mais chapadas ainda do que ele, o convidaram para “saideiras” em suas mansões.

Enfim, conversa vai, conversa vem, em alguns desses casos, acabou ficando amigo de verdade de alguns astros e sabia que, estes, por questões de solidariedade, compaixão, fidelidade ou seja lá o que for, continuavam a se abastecer com o traficante-aposentado-ator.

Levantou um empréstimo com um dos agiotas lituanos que ainda não o conhecia bem e foi pra Hollywood. Em três dias, tinha encontrado seu homem parado, bem cedo da manhã, numa das esquinas mais movimentadas da cidade. Abraçaram-se efusivamente e meu amigo, aproveitando-se do início da ressaca do ex-ator, começou de imediato a expor seu plano de oferecer-lhe um emprego para voltar a atuar.


Por volta das quatro da tarde, na mesa de um boteco a quilômetros de distância de onde se encontraram, os dois finalmente fecharam um acordo na base do aperto de mãos.

Viajaram no dia seguinte e foram direto pro galpão que meu amigo acabara de alugar, pra discutir e ensaiar detalhes de como um ex-ator traficante se transformaria em um alto membro da nobreza de Dubai. Em paralelo, Speed, que também participava das reuniões, ia preparando o caminho para ter contato novamente com os políticos da pasta.

Foi mais ou menos a essa altura, que meu amigo me ligou perguntando como poderia entrar em contato com meus amigos hackers. Sem pensar muito, dei as coordenadas, com medo de perguntar exatamente pra quê.

Sem sequer imaginar, muito menos perguntar, fique sabendo, no dia daquele primeiro encontro no galpão, que meu amigo “e alguns investidores” já tinham grana suficiente para comprar os direitos autorais do uso das imagens de alguns personagens de histórias em quadrinho e filmes.

Minha única e vaga noção sobre o processo é que o “depósito de confiança” dos políticos da pasta havia passado por contas de empresas fantasmas de diversos paraísos fiscais, até ir parar na conta de uma companhia encarregada de implantar rede de água e esgoto numa tal Ilha Santa Lúcia, também ali pela região do Caribe.


Senti um arrepio no fundo da espinha ao perceber que ele estava falando sério sobre o assunto e que, de alguma maneira, eu já estava envolvido na confusão.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

À VENDA ON LINE E AGORA EM TODAS AS LIVRARIAS! (1ª temporada, episódio 11)

Aproximei-me de uma assistente que tinha a cara menos estranha do grupo e perguntei, com ar de preocupação, se, por acaso, meu amigo não havia deixado de tomar os remédios prescritos durante a sua mais recente reabilitação e voltado às drogas, digamos, ilegais.

Ela me respondeu com um revirar de olhos que até hoje não entendi o significado.

No centro do galpão, havia uma dessas mesas compridas, meu amigo à cabeceira e seis ou sete assistentes, incluindo Speed, sentados ao redor. Ofereceram-se uma cadeira e, após perguntarem se alguém queria beber ou comer algo, meu amigo começou a expor “o plano”.

Eu gravaria um comercial maquiado como o Coringa, mas de forma estilizada – exigência dos detentores dos direitos autorais. Meu rosto aparecia em close, com cortes na altura do começo do cabelo na testa e no queixo, o que daria destaque aos movimentos da grande boca. Meu texto se resumia à citação em azul na capa do livro pardo: ““não se defenda, chute primeiro, acerte nos bagos, não hesite, chute já!”


A câmera se afastaria do meu rosto, até me pegar de costas, sentado numa cadeira iluminada apenas por um holofote que destacava a minha silhueta contra o escuro do resto do cenário.
Embaixo da tela, num letreiro, agora em letras maiúscula e amarelas: “ESCRACHANDO O DEMÔNIO COM UM CHUTE NOS BAGOS. À VENDA ON LINE (link do site) E AGORA EM TODAS AS LIVRARIA”.

- Por que o Coringa?, perguntei.

- Porque é ao mesmo tempo assustador e engraçado”, respondeu uma das garotas da produção.

- Mas esse é só o primeiro, prossegui meu amigo. Num dos vídeos você aparece de Coringa; em outro, como o Flash, e outro, como o Batman. Vão passar os três comerciais alternados, com várias inserções ao dia.

- Vocês despirocaram de vez? Tô fora dessa merda.

Meu amigo voltou à carga: “Cara, vê se entende, vai ser o primeiro livro de autoajuda recomendado por super heróis.”

- Toda essa confusão legal, de paraíso fiscal, chantagem, dinheiro lavado pra comprar direito autorais. Vocês já pensaram na grande bosta que pode dar isso?

- Nós já temos um puta grupo de advogados especializado trabalhando nisso. Na verdade, eles são especialistas em apagar todos os rastros e pegadas”, disse confiante meu amigo.

Que prosseguiu: “Isso me deu outra grande ideia. Vamos fazer um quarto comercial com você caracterizado como Saul Goodman.

- Quem é Saul Goodman?, perguntei.

- O advogado do Walter White, do Breaking Bad. Tão fazendo uma série sobre o Saul antes de ele conhecer do Walter. Já está na segunda temporada e começou a bombar na TV a cabo.

- Gente, agradeço a atenção, mas estou desesperadamente precisando me esconder em minha caverna. O Speed poderia me levar de volta agora?

Chovia quando o helicóptero desceu no gramado de casa.

Perguntei pro Speed se ele não queria esperar um pouco para decolar de novo, mas ele me garantiu que, depois das montanhas, o tempo estava ótimo.

Em vez de tomar a direção de casa, fui para a caverna.


Cheguei lá ensopado, mas fiquei vestido até anoitecer, quando ouvi minha mulher colocar uma bandeja com comida na entrada da caverna.

Ela sabia que o melhor a fazer, nessas ocasiões, era me deixar distante de todos, inclusive dela.
Escureceu por completo. Acendi os lampiões e fui buscar a bandeja que minha mulher havia trazido.
Aproximei-me dos lampiões e comi.

Continuava chovendo. Recolhi alguns galhos secos no chão da caverna e, usando um pouco de querosene de um dos lampiões, acendi uma minifogueira. Dormi com as roupas ainda úmidas, ouvindo a chuva caindo lá fora.

Acordei com um raio de sol que atingiu meus olhos a partir de uma fenda numa das paredes de rocha.
Levantei, fui lá fora e disse em voz alta: “Já que não consegui me tornar invisível nem um pregador bêbado de uma igreja no deserto, vamos lá então, chutar os bagos do demônio.”

Liguei para meu amigo e perguntei se Speed tinha condições de vir me buscar a tempo de participar do início da produção do comercial com o Coringa. Ele respondeu que tudo bem.


Aguardariam minha chegada para começar os preparativos. Minha presença ajudaria.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

“SÓ O CORINGA CHUTA OS BAGOS DO DEMÔNIO. REJEITE IMITAÇÕES.” (1ª temporada, episódio 12)

Ao contrário do que previa, foi até divertido gravar aquela porra toda.

Houve um momento que me senti até mesmo “entrando” na personagem e dizendo minha fala como se fosse o Coringa.

Nesse momento, senti um calafrio e pedi pra aumentarem um pouco a temperatura do ar condicionado.
Passamos a manhã toda gravando e o comercial saiu de lá já editado.

Na saída, sugeri, até agora não entendo o motivo, que o Coringa podia ser um dos personagens dos próximos workshops. Speed ligou o helicóptero e a conversa ficou por ali.

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A merda é que a maquiagem pesada do Coringa em volta da boca atrapalhava a minha dicção. Então eu tinha que praticamente falar tudo gritando, para que as pessoas conseguisse ouvir direito.

O mais estranho é que não consigo me lembrar de absolutamente nada do que eu ou o Coringa dissemos naquela noite. Só sei o que li nos jornais do dia seguinte, já que o workshop ganhou grande destaque na imprensa.

Ao que parece, eu, ou o Coringa, convocara uma rebelião contra todas as autoridades constituídas, em especial as religiosas, já que elas eram as responsáveis pelas guerras, pela fome e por toda a miséria que acometia atualmente a humanidade.

O engraçado – e estranho – é que todos os workshops eram gravados e filmados, como parte de um projeto de lançar um DVD. Nesse dia, porém, os aparelhos pifaram, sem que os técnicos tenham conseguido definir o motivo, já que o resto do equipamento de palco estava funcionando normalmente.

Resumindo, não havia qualquer registro sonoro ou visual sobre o que aconteceu naquela noite.

Também não me lembro de ter usado minha habitual tática de fugir pelos bastidores. A única coisa de que me recordo é de mim encostado num muro, enquanto esfregava violentamente o rosto, procurando arrancar com as mãos a maquiagem do Coringa.

Um mendigo se aproximou de mim e me ofereceu algo dentro de uma garrafa de plástico. Agradeci, mas disse que não podia beber mais. Ele me explicou que não era para beber, mas para passar o líquido no rosto e ajudar a tirar a maquiagem. Esfreguei o líquido e facilmente meu rosto ficou totalmente limpo.

“Agora, você pode dar sua mijada de costume. Mas nunca mais se meta com o Coringa, nem brincando. Ele é pior que o Demônio e sua maldição já matou muita gente”, disse o mendigo, se afastando lentamente.

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Alguns dias depois, meu amigo ligou.

- Cara, que sucesso! Não imaginava que o workshop com o Coringa ia ter tanta repercussão. E a ideia foi sua, lembra? Você já viu a cobertura maluca que a mídia anda dando até hoje ao assunto?

- Não.

- Cada pessoa que esteve lá e é entrevistada diz uma coisa completamente diferente da outra. Discutem que o Coringa nunca disse tal coisa, mas outra entra em enquadramento no vídeo e garante que ele disse exatamente tal coisa. Uns dizem que foi a coisa mais importante que já viram na vida. Outros garantem que vomitaram quando ouviram aquelas coisas, embora, no fundo, admitissem que concordavam com o que foi dito. Já começaram a aparecer pichações em algumas cidades,com dizeres tipo “Só o Coringa chuta os bagos do Demônio. Rejeite imitações.”



- Você esteve lá?

- Não consegui chegar a tempo. O helicóptero do Speed deu pane do nada. Mas, hoje de manhã, aqui no galpão, já decidimos que não vamos mais fazer os comerciais com o Flash, Batman, etc. Vamos centrar tudo no Coringa. Você vai fazer novos comerciais, no mesmo estilo, mas dizendo algumas das frases do que você disse naquele workshop e convidando para o próximo.

- Velho, eu não me lembro de absolutamente nada do que eu disse naquela noite.


- Nada?

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

VOCÊ DIZ QUE CHUTA OS BAGOS DO DEMÔNIO, MAS TÁ COM MEDO DE CHUTAR OS BAGOS DO CORINGA? (1ª temporada, episódio 13)

- Nada. Você sabe que eu falo de improviso. Só vou me norteando mais ou menos pelas fichas que trago na mão. Bem, as fichas simplesmente sumiram do meu bolso e, como nada foi gravado ou filmado, além das pessoas presentes divergirem às vezes totalmente do que eu disse, o Coringa não vai poder repetir nada do que disse naquele dia.

- Bem, podemos escolher frase do livro e usar como texto novo nos comerciais. Acho que ninguém vai se tocar a respeito disso. Mas, o mais importante, é que, daqui para diante, você só vai fazer workshops vestido de Coringa.

- O quê?

- Do jeito que a coisa está indo, os gringos com certeza vão querer fazer ajustes no contrato de direitos autorais. Vão pedir bem mais do que a princípio. Mas acho que vale o investimento. Eles parecem cada vez mais interessados no assunto. Já ouvi comentários sobre a ideia de fazer um longa chamado “O Coringa Escracha os Bagos do Demônio.”

- Mas acho que você esqueceu de que o Coringa é um dos anti heróis  mais odiados dos últimos tempos.

- E daí? Os tempos mudam. Anti heróis podem ter uma crise de consciência e virar super heróis.



- Acho que você precisa parar de falar e ouvir o que eu tenho a dizer: eu nunca mais vou fazer qualquer comercial maquiado como o Coringa, muito menos fazer workshops vestido como ele.

- Ficou maluco?

- Talvez, mas você não sabe ou não está dando a devida atenção a alguns eventos que ocorreram naquela noite e nos últimos dias. Coisas muito estranhas, até para mim. Você já ouviu falar sobre uma tal de “maldição do Coringa”? Andei recebendo uns e-mails anônimos deixando claro que quem se mete com o Coringa acaba se dando mal. Lembra dos problemas que os atores que o interpretaram no cinema tiveram? Alguns tiveram que passar por tratamentos psiquiátricos longos e um chegou até a se matar, ninguém sabe se acidental ou propositadamente.

- Isso tudo foi jogada de marketing. De concreto, só teve aquele rapaz que tomou uma overdose de barbitúricos, mas isso é normal no meio artístico, ou não?

- Aconteceram coisas estranhas naquela noite. Coisas sobre as quais eu não quero comentar, mas que fizeram eu decidir não mexer mais com o Coringa.

- Você diz que chuta os bagos do Demônio, mas tá com medo de chutar os bagos do Coringa? Não acredito. Por acaso, você tem ouvido vozes do Espírito Santo novamente, é?

- Vai se foder. O negócio é o seguinte: ou você aceita a condições de esquecer a porra do Coringa daqui para frente ou paramos com tudo já!

- E você já imaginou o que eu teria que pagar de multas contratuais com o cancelamento do que já foi programado?

- Novamente, foda-se. Eu não pedi nem fui consultado sobre essas novas ideias psicóticas, não concordo com elas e não vou aceitar participar dessa coisa de psicopata capitalista travestida de misericórdia e religiosidade.

Sinceramente, nem eu entendi o significada das minhas palavras, nem na hora nem agora.
Meu amigo ficou um longo período em silêncio. Depois desligou.

Não era possível explicar racionalmente a minha reação extremada contra aos planos de centrar o projeto do “Escrachando o Demônio” no uso da imagem do Coringa.

Não foram os e-mail anônimos com ameaças, a série de eventos absurdos que ocorreram naquele workshop mais do que estranho, nem o medo a maldição do Coringa sobre a qual falou aquele mendigo que me ofereceu a garrafa de plástico com o líquido que, como por mágica, derreteu a maquiagem que eu tentava desesperadamente tirar do meu rosto.

Volta e meia, porém, o olhar daquele mendigo se afastando lentamente e me advertindo para não brincar com o Coringa retornava à minha memória, como se aquele aviso tivesse algo muito importante e que eu não estava percebendo.

Outra coisa é que, durante um período de isolamento na caverna refleti sobre o fato de ter me afastado do mundo com o objetivo de aprender a me tornar invisível nos últimos anos da minha vida.

No entanto, embora minha verdadeira identidade tenha sido preservada, as personagens que utilizava nos workshops, que agora também eram comercializados em DVDs, haviam se tornado virais em praticamente todas as mídias.


Daí, veio a pergunta fatal: afinal, que diabos eu realmente queria da vida e quem realmente eu era  


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