quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

OS ÚLTIMOS SHOWS DO PROFETA PSICOPATA (1ª temporada, episódio 14)

Claro que toda a popularidade em torno do que eu escrevia e dizia inflou meu ego, a ponto de achar ter encontrado minha verdadeira missão: escrever livros malucos de autoajuda que, ao invés de aliviar a alma das pessoas, criava ainda mais dúvidas em suas cabeças. Uma ideia que, certamente, o Demônio acharia genial.

Contudo, por que me sentia infeliz e perdido, sentado naquela caverna que tantas vezes antes me mostrou o caminho a seguir e os passos a dar?

Eu e minha mulher conversamos bastante sobre o rumo que as coisas haviam tomado, concluindo que só tínhamos duas alternativas: gastar o dinheiro ganho com o projeto do “Escrachando” procurando um lugar ainda mais afastado ainda para viver ou começarmos a cuidar melhor do local onde vivíamos e que, exceto por meu amigo e pelo piloto Speed, ninguém sabia aonde ficava.

Por um misto de preguiça e praticidade, foi fácil nos decidirmos pela segunda opção.

De qualquer forma, eu sentia que era necessário, primeiro, dar um final decente a toda essa história de chutes nos bagos, uma espécie de satisfação a todas aquelas pessoas que haviam levado a sério a armação arquitetada por meu amigo.

Se simplesmente deixássemos tudo como estava, o mito do “profeta superstar” acabaria crescendo ainda mais, tornando-se, quem sabe, mais pernicioso para as pessoas do que a farsa sobre o pastor prodígio e seus diálogos mudos com o Espírito Santo, e eu não sabia se conseguiria viver convivendo com uma fraude que eu ajudara a criar e me beneficiara dela.

Por isso, meu amigo ficou definitivamente surpreso quando ouviu minha voz de novo no seu celular. Mais confuso ainda deve ter se sentido quando lhe disse que havia tido uma ótima ideia para dar um gran finale para a epopeia do nosso “profeta psicopata”.


E qual seria essa ótima ideia, ele perguntou, começando a gaguejar do outro lado da linha.

- Nós vamos sumir com ele.

- Matá-lo? Isso daria um bom marketing, ajudando a amenizar as dívidas pelos contratos quebrados.

- Não vamos matá-lo. Vamos sumir com ele. Anunciar que ele decidiu se recolher definitivamente em um pequeno povoado tibetano, para escrever sua autobiografia e uma versão simplificada do Livro Tibetano dos Mortos.

- Antes de partir nessa missão, porém, ele vai realizar dois últimos seminários, que darão às pessoas talvez a última chance de vê-lo pregando ao vivo.

- Esses workshops, além de serem realizado em lugares bem amplos, talvez até estádios, seriam também registrados em DVDs, vendidos em uma caixa contendo todos os vídeos de suas outras palestras, uma transcrição misteriosamente descoberta sobre o workshop do Coringa e uma edição de luxo do “Escrachando o Demônio com um Chute nos Bagos”, repleta de fotos inéditas de todos esses eventos.

- Bem, é melhor do que sair de cena sem dar satisfação nenhuma. Além disso, a venda dos ingressos e da caixa ajudaria a saldar as dívidas com as multas contratuais e ainda deve dar um lucrinho. Mas o mais interessante é que deixamos a “porta aberta” para um futuro retorno, com a perspectiva de lançar sua autobiografia e a versão popular do Livro dos Mortos, avaliou meu amigo.

- Bom, você organiza aí as coisas e vai me dando os detalhes. Ah, no último workshop vou vestido de astronauta.

- E na primeira?

- Ainda estou pensando.

- Como andam as coisas?, perguntei a meu amigo depois de três semanas.

- Estão indo bem. O primeiro estádio tem cerca de 40 mil lugares. Mais da metade dos ingressos já foi vendida via internet. Estamos promovendo nas redes sociais, TVs, jornais e cartazes de rua. Já escolheu seu personagem?

- Já.

- Quem?

- Stephen Hawking!

- Quem?

- Stephen Hawking, o físico na cadeira de rodas.

- Você ficou maluco?

- Não, veja bem, faz sentido. O Hawking imobilizado, na cadeira vai fazer um contraponto com o pastor mirim que sofreu o AVC, lembra?. Só que as pessoas não vão precisar dos pastores para traduzir o que o Espírito Santos vai dizer. O público vai poder ouvir o Hawking através dos aparelhos de som. Sacou?

- Às vezes acho que você é mais insano do que eu. Isso vai exigir uma puta infraestrutura. Não sei se vai dar certo.


- Olha, esses problemas é você que resolve. Me liga quando estiver tudo pronto pra gente ensaiar.

Quando fizemos o primeiro ensaio, fiquei realmente puto pela ideia que tive, já que deu um trabalho imenso aprender a me movimentar com a cadeira de rodas mecânica e muito difícil falar através do microfone preso no meu paletó. O pior mesmo foi a questão da saída após o final do workshop. 

O pessoal montou tipo uma passarela pela qual eu era empurrado por duas garotas vestidas de fadas até dentro da entrada de um dos vestiários. Uma vez lá dentro, minha mulher tinha menos de cinco minutos pra tirar minha roupa e remover a maquiagem.

Passamos quatro dias ensaiando, entre notícias de que os ingressos já estavam esgotados.

Ah, e havia ainda o problema dos tradutores, já que a palestra seria feita em português, inglês e francês.

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

PINTOU? UM CHUTE NA BUNDA E VAMOS EM FRENTE! (1ª temporada, episódio 15)

É engraçado a gente falar e ter outra pessoa repetindo o que a gente disse em outro idioma.


Isso já aconteceu comigo outras vezes, mas ainda não me acostumei.

Minha impressão é que o tradutor ou a tradutora não estão simplesmente traduzindo o que eu falei, mas também explicando melhor pra vocês o que eu não consegui explicar direito na minha própria língua.

Alguns dias atrás, sugeriram que eu devia mudar a minha medicação, fazer alguns ajustes, essas coisas.



Pensando bem, talvez essa sensação que eu tenho a respeito dos tradutores, que parecem conseguir explicar melhor o que quero dizer, seja um efeito colateral passageiro dos novos remédios.

Então, me desculpem se, vez por outra, esta noite, eu começar a divagar sobre outros assuntos que nada tem a ver com o nosso tema central.

Peço, inclusive, que se isso acontecer, vocês me chamem a atenção, para que eu volte aos trilhos.

Agora, estou imaginando o trabalho quer os tradutores tiveram pra tentar explicar a vocês o que eu acabei de dizer.

Mas essas coisas são aparentemente insolúveis, ou seja, sua solução não importa nem um pouco para o que realmente interessa. Bem, quero dizer que essas coisas insolúveis vão sempre aparecer no meio do caminho, seja lá o caminho que você estiver trilhando.

E, se estamos com pressa, isto é, com prazo marcado pra morrer, o que pode acontecer a qualquer momento, sugiro que não percamos mais tempo com essas coisas hoje à noite.

Pintou? Chute na bunda e vamos em frente.

Tenho a sensação de que alguns ou algum dos novos remédios começaram a fazer efeito neste instante.

Digo isso porque já não me causa mais desconforto o fato de ter alguém traduzindo o que eu digo.

Agora, parece que falamos todos a mesma língua, por mais impossível e absurdo que isso possa parecer.

Não é que tenhamos ultrapassado as barreiras das línguas. Elas continuam existindo, mas já não me sinto bem com o nível de sintonia sensorial que alcançamos a partir deste ponto.

Isso torna a barreira da língua bem mais amena. É possível que, em determinados assuntos, nem precisemos mais de tradução. O som das palavras dará o sentido exato sobre o que falamos.



Acredito que, nestes momentos muito curtos, estejamos realmente do outro lado da brecha.

Ali, do outro lado, eu acredito que seja possível estabelecer outros canais de comunicação muito mais visuais do que verbais, mais sensitivos do que racionais. Enfim, um jeito mais simples de dizermos exatamente o que querermos dizer uns aos outros, sem tanto ruído e tanta confusão causados pelas palavras como único meio de interlocução entre nós, humanos.

E a maneira mais óbvia (não disse a mais fácil) de viver o máximo de tempo nesse outro lado, nesse outro nível de comunicação é a compreensão profunda de que devemos agradecer a mijada que damos em cada momento, tentando ficar vivos para poder mijar de novo.

Tenho a sensação de que, infelizmente, vamos ter que encerrar nossa conversa aqui. Estou sentindo muito sono e preciso me deitar um pouco aqui para descansar. 

Alguém poderia me ajudar a desligar os fios, sair da cadeira e deitar no chão?

####

Acordei num quarto de hospital. Soro no braço, máscara de oxigênio na cara.

Uma enfermeira se aproximou da cama, viu meus olhos abertos e foi chamar alguém.

Apareceu um médico careca que me perguntou se eu podia ouvi-lo. Fiz sinal com a cabeça que sim.

O médico disse algo incompreensível para a enfermeira, que espetou uma agulha no meu soro. Apaguei de novo.

Quando acordei, comecei a imaginar de que jeito conseguiram me tirar do centro do gramado do estádio, quem tirara minha maquiagem e como tinha vindo parar no hospital.

Não demorou muito e minha mulher e meu amigo apareceram e perguntaram como eu estava. Disse que, tirando a sonolência, tudo bem.

Meu amigo foi o primeiro a falar.

- Que porra te deu? Mudança de medicação? De onde você tirou isso? Você estava realmente drogado? 



Toda a equipe da produção ficou maluca. Mas, por incrível que pareça, quando te retiraram do gramado, o público aplaudiu de pé, como se fosse o final de um show de rock.

Minha mulher não disse nada. Afinal, eu e ela planejamos tudo juntos, inclusive meu desmaio, provocado por três soníferos que havia ingerido logo no começo da palestra, confiando em que fariam efeito no momento exato previsto na bula.

O timing foi perfeito e, como ela já sabia o que ia acontecer, providenciou socorro de imediato, além de tirar minhas roupas e maquiagem antes dos caras da ambulância virem me buscar, mas, como logo em colocaram uma máscara de oxigênio, ninguém prestou atenção ao meu resto.

Uma performance irretocável.