sábado, 30 de janeiro de 2016

"MUITO ALÉM DO MAR VERMELHO!" (1ª temporada, episódio 05)

Passaram-se vários meses sem que eu tivesse qualquer pensamento a respeito de espíritos, demônios, revelações esotéricas ou surtos de escrita automática debruçado sobre o teclado do computador. 


Um dia recebi pelo correio um pacote com um exemplar de um livro chamado “Muito Além do Mar Vermelho”. Junto, vinha um bilhete do meu amigo, contando que a coisa estava vendendo que nem água, e não só entre os membros da igreja, mas também entre muita gente que nem religiosa era. 

Claro que o fato de um vídeo promocional ter viralizado na internet ajudou bastante. 

O vídeo trazia depoimentos de dois jogadores de futebol famosos, uma dupla sertaneja, um filósofo ateu e de uma cantora de funk, explicando como o “Muito Além do Mar Vermelho” tinha mudado as suas vidas. 



A princípio, era ideia incluir também uma ex-garota de programa que virou atriz, mas parece que não chegaram a um acordo quanto ao cachê. 

No final do bilhete, que mais parecia uma carta devido a sua extensão, meu amigo mandava eu me preparar porque os pastores já estavam decididos a lançar uma continuação do primeiro livro. 

Já havia até um título escolhido para a nova obra: “Muito Além do Mar Vermelho e Seguindo Adiante.”

Como tinha escrito o agora batizado “Muito Além do Mar Vermelho” o mais rápido que consegui e, principalmente, sem prestar o mínimo de atenção que fosse ao que estava sendo escrito, não me lembrava de quase nada do que escrevera.

Não cheguei nem mesmo a fazer uma revisão superficial no texto antes de encaminhá-lo para os pastores, um requisito profissional mínimo que todos os escritores fantasmas – até os mais irresponsáveis – devem obedecer antes de entregar qualquer trabalho a quem o encomendou.

Debitei mais essa “negligência profissional” a minha preguiça ancestral crônica, que havia se tornando ainda mais radical depois que me recolhi a minha caverna para fazer desenhos imaginários nas paredes.

Vai daí que, quando abri o “Muito Além do Mar Vermelho” e comecei a lê-lo, parecia que estava tomando contato pela primeira vez com um livro escrito por outra pessoa, a qual, eu, obviamente, desconhecia por completo.

Esse distanciamento esquizofrênico em relação ao texto me deixou curioso em saber de que diabos realmente tratava a porra do livro de um pastor-prodígio que pretendia conquistar um mundo de seguidores através de palavras impressas dentro de coloridas e desenhadas capas duras.


-Mais ou menos uma semana depois, mandei um e-mail para o meu amigo que intermediava as negociações com os homens do Espírito Santo.

“Não vou fazer a continuação do porra do Mar Vermelho. Comecei a escrever um livro. Vai chamar “Sobre o Livro dos Pastores”. É uma reunião de reflexões que estou fazendo  a respeito das coisas que o pastor-mirim disse no livro dele que eu escrevi.

“As primeiras 20 páginas já estão on line em um blog hospedado num servidor da Romênia desde ontem. 

Uns amigos disfuncionais – antigamente eram chamados de hackers, é esse o termo ainda? -, eles bolaram um esquema maluco que dispara centenas de pop ups piratas que invadem os principais portais do país, e alguns até do exterior.
“O poup up é um selinho, dizendo ‘Sobre o Livro dos Pastores – Leia já antes e que seja tarde!’.

“Os caras dos portais vão arrumar, logicamente, um jeito de bloquear o troço, mas, até lá, vamos ver se acontece algo interessante.
“Abraços, velho!

“PS - O nome do blog é “Escrachando o Demônio Com Um Chute nos Bagos”. Dá uma olhada e veja o que você acha.”


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Se eu tivesse ideia da encrenca em que estava me metendo, teria pelo menos usado um pseudônimo. 

A questão é que a merda estava feita. Não demorou muito para que meu nome começasse a aparecer em alguns blogs meio obscuros como o autor de é “Escrachando o Demônio Com Um Chute Nos Bagos”
Alguns desses blogs (os menos obscuros) eram publicados em portais. 

Um dia, provavelmente devido a um surto agudo de falta de imaginação de um pauteiro do caderno de cultura de um de um jornal relativamente conhecido, um repórter foi encarregado de fuçar esse “negócio” de “Demônio escrachado” que algumas pessoas andavam comentando na redação e nas redes sociais. 

Na sequência, uma daquelas emissoras de TV, sempre a ponto de decretar falência por falta de anunciantes e dívidas trabalhistas, também entrou umas de fazer uma matéria sobre o assunto na editoria de variedades de um telejornal regional. 

Passadas algumas semanas, uma repórter de um portal alternativo me ligou perguntando se eu não estava a fim de contar “toda a história”.

Perguntei de que porra de história ela estava falando. Ela me respondeu que já havia um considerável número de pessoas nas tais redes sociais dizendo que o é “Escrachando o Demônio Com Um Chute nos Bagos” era uma “resposta” ao best-seller instantâneo “Muito Além do Mar Vermelho”.

Afirmei a ela que esse pessoal só podia estar pirado. Garanti que jamais havido lido esse tal “Muito Além do Mar Vermelho” e nem sabia do que se tratava. Na verdade, eu estava andava realmente postando de maneira homeopática na internet trechos de um livro que eu andava escrevendo e que, por acaso, tinha o título provisório de “Escrachando o Demônio Com Um Chute Nos Bagos”. 

Se o livro que havia começado a escrever via internet tinha alguma semelhança com o tal de “Muito Além do Mar Vermelho”, seja lá em que sentido fosse, tudo não passava de mera coincidência, pois, como já havia dito, nunca li o livro que a repórter estava citando.

De repente, a moça mudou o tom da voz e perguntou se, por acaso, tudo o que eu estava falando para ela não seria também parte da “história”.
- Mas, afinal, que história é essa que você está falando?

- A história do “Escrachando o Demônio”. 

- Não estou entendendo sobre o que você está falando.

- Bom, é normal que você, a essa altura, queira esconder o jogo, mas o que eu quero saber é se isto que nós estamos conversando agora também vai entrar na história.

 Quer dizer, ainda não existe uma história acabada, a história ainda está sendo escrita e esta conversa que estamos tendo agora, por telefone, também fará parte da história? E por que estão achando semelhança entre o livro que você está escrevendo e o best-seller escrito por um garoto que diz falar todo o dia diretamente com o Espírito Santo? 
Desliguei o telefone sem responder nada e fui dar uma volta na chuva fina que tinha voltado a cair lá fora. Escorreguei na grama e fiquei estirado de barriga pra cima, sentindo os pingos batendo suavemente na minha cara.

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

EM CANA OU NO HOSPÍCIO (1ª temporada, episódio 06)

Já repararam como somos absurdos?

Volta e meia, por questão de segundos, percebemos isso.

Como se, de repente, nossa origem alienígena dos mandasse o recado de que, por mais que tentemos, não conseguiremos nos adaptar totalmente ao mundo em que fomos jogados.

E, em certos momentos, essa nossa incapacidade fica mais clara, a ponto de pessoas próximas ficarem se perguntando se não há algo de errado conosco, alguma disfunção ainda não catalogada.


Enfim, como diziam os ancestrais, “damos bandeira”, e agradecemos por não haver nenhum tira ou psiquiatra por perto para nos colocar em cana ou em um hospício.

Mas vamos por enquanto deixar essas teorias interplanetárias de lado e pensar um pouco mais concretamente sobre o absurdo que às vezes sacamos que somos.

Claro, tem muita gente que nunca teve nem terá essa sensação.

Contudo, estamos conversando aqui sobre as pessoas que, de vez em quando, sentem que, se a vida é absurda, elas são mais absurdas ainda tentando a todo custo dar algum sentido a suas vidas absurdas.

Vejam bem, não estou falando daquele tipo de absurdo de que a gente nasce, cresce, envelhece e morre. Refiro-me ao absurdo maior ainda que é o modo como lidamos com esse ciclo natural de acontecimentos, comuns a toda a humanidade.

Por mais que nos esforcemos, sempre fazemos alguma coisa estúpida, absurda em relação a determinado assunto com o qual estamos lidando. O problema é que só percebemos isso depois que a cagada  foi feita e não há como voltar atrás.

Embora não seja médico, psiquiatra, guru, padre, pastor nem nenhum tipo dessas coisas, é comum as pessoas me perguntarem se esse troço tem cura.

Sempre respondo que não faço ideia, mas que me esforço para preservar – e como mais frequência ainda, resgatar – a sensação de esperança de que isso é possível, mesmo que dure apenas pequenos momentos que, quem sabe, possam ir se ampliando, até nos permitir encontrar a brecha, a verdadeira brecha.


A esta altura, vocês devem – ou sinceramente deveriam – estar se perguntando que merda estão fazendo aqui, com as suas bundas esquentando suas cadeiras e vice-versa, ouvindo um sujeito que confessa que sabe,tanto como escapar pela brecha quanto vocês. Ou seja, praticamente porra nenhuma.´

Bem, essa resposta só vocês poderão dar.

De minha parte, diria que os três patetas já estão mortos. Mas eu continuo vivo.

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Nunca entendi direito a reação automática das pessoas aplaudirem no exato momento em que alguém acaba de falar. Acho que é impossível que elas consigam digerir e menos ainda refletir sobre tanta coisa que foi dita. Em todo o caso, foi isso que aconteceu quando agradeci a atenção e me despedi.

Quando escapava pelos bastidores, fiquei esperando que alguém gritasse de novo “babaca”, mas desta vez ouvi: “Não deviam deixar esse cara solto.”

Talvez o autor da frase tivesse razão, mas eu estava ocupado demais começando a ficar invisível e sumindo nas ruas.

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Atendi o celular e ouvi: “Os caras querem que você faça seu preço?”

- O quê?

- Quanto você quer pra fazer a continuação da porra do livro?

- Agora estou mergulhado no “Escrachando o Demônio”. Arruma outro cara pra fazer a continuação. Tá cheio de sujeito aí que consegue ser tão ou mais idiota do que eu.

- Eles querem você.  Disseram que você sabe traduzir e simplificar a “linguagem do Espírito Santo”, coisas do tipo. Pior, começaram a usar o “Mar Vermelho” nos cultos. Quase não citam a Bíblia. E o tal pastor prodígio que eles queriam promover teve um AVC punk e agora tá quietinho e mudinho numa cadeira de rodas.

- Por que os caras não fazem aqueles milagres lá deles e resolvem isso?

- Eles dizem que não dá pra fazer milagre porque o garoto não quer. Na visão deles, foi o próprio garoto que quis ficar fodido assim.

- O quê?
- É, diz que assim ele ouve melhor a voz do Espírito Santo.

- Mas, se ele tá mudo, como é que os outros pastores sabem que ele virou abóbora por vontade própria?

- Ele se comunica mentalmente com os outros pastores. Foi ele que disse que só você podia fazer a continuação do livro dele. Mas não foi por isso que eu te liguei.

- Ligou pra quê então?

- Aquele teu negócio do “Escrachando” tá crescendo, já percebeu? Uma porção de acessos por dia.
- Eu desisti desse troço há uns dois meses. Não linquei mais o blogue.

- Por que você desistiu?

- Perdi o tesão. Agora tenho passado a maior parte dos dias atirado bolinha pra dois de meus cachorros viciados nesse tipo de coisa. Não sobra muito tempo pra mais nada.

- Você acha que pode retomar o blogue?

- Pra quê? Meus cachorros ficariam confusos.

- Reserva um período específico pra isso, quer dizer, pra atirar bolinha. Assim eles acabam se acostumando que é só naquela hora que você vai atirar bolinha e nos resto do tempo você escreve no blogue.

- Sabe, a verdade é que eu tô achando mais divertido atirar bolinha do que escrever no blogue.

- Tudo bem, mas a gente podia tentar um lance. A gente faz um acordo lá com teus amiguinhos 
hackers, eles dão uma ressuscitada no blogue e depois a gente junta os textos e edita um livro. Monta outro esqueminha pra esquentar o livro on line e por aí vai. Se você fizer mais uns, sei lá, 20, 30 posts, acho que já dá pra fechar um livro. O que você acha?

- Não sei, preciso pensar um pouco.  Conversar com a minha mulher, meus cachorros, pesar os prós e os contras, essas coisas.

- Pensa aí, mas esse troço do “Fodendo o Demônio”, acho que pode dar o maior pé, se a gente fizer a coisa direitinho.

- Não é “Fodendo”. É “Escrachando”.
- Que seja. Pensa aí.

- E a porra da continuação do livro dos pastores?

- Ah, fodam-se os pastores. Eles que resolvam o problema deles lá. Vamos partir pra outra, livro, DVD, palestras e assim por diante. Quem sabe até um programa na TV a cabo.

- Por que essa mudança súbita de ideia? Cansou de ganhar dinheiro com os pastores?

- Já te disse, fodam-se os pastores.

Foram suas últimas palavras, após ficar um longo período em silencio e desligar o telefone.


Era totalmente inútil tentar imaginar por que meu amigo havia mudado tão subitamente de ideia quanto a fazer uma continuação do “Além do Mar Vermelho”.

Quem o conhecia bem sabia que sua cabeça funcionava como aquelas birutas de aeroporto. Além disso, era vítima de crises de tédio ancestrais sempre que ficava alguns meses tratando de um mesmo assunto.

Quando esse tédio atávico batia, ele, primeiro, começava a se chapar pesado com a droga de sua preferência no momento. Daí, era obrigado a entrar pra uma reabilitação, período em que ficava maquinando o que poderia fazer quando estivesse fora da clínica.

Talvez tudo isso estivesse interligado, mas pra mim não tinha importância agora.

Minha cabeça estava fixada sobre aquilo que falou a respeito de um livro, DVD, palestras e assim por diante. Inclusive, o que mais me preocupava era o “assim por diante”, porque podia significar coisas mais loucas ainda do que tudo o que ele falou, incluindo o programa de TV a cabo.

Para quem estava interessado em se tornar invisível, aquela conversa toda soava como um grande pesadelo.

Mas, ao mesmo tempo, a ideia de soltar um livro chamado “Escrachando o Demônio com um Chute nos Bagos”, independente do que estivesse escrito nele, reascendeu em mim algo que eu sinceramente pensava estar definitivamente morto e enterrado:

A irresistível vontade de fazer algo completamente irresponsável sem nenhum objetivo específico, como quando somos moleques e atiramos uma pedra numa vitrine apenas para ouvir o barulho que o vidro faz quando se estilhaça.


Passei as semanas seguintes alternando o lançamento de bolinhas pra meus cachorros com períodos sentado ao computador, escrevendo o que me vinha à cabeça sobre as diversas formas imagináveis e possíveis de acertar os bagos do Demônio.

Quando o fluxo travava, eu ia dar uma volta da chuva que caía fora da cabana.

Nunca cheguei a reparar que sempre que eu travava, chovia e eu saía pra caminhar.
Voltava encharcado, sentava ao teclado e o fluxo voltava.

Seja qual fosse o motivo, funcionava, pra azar dos bagos do Demônio.

Entrei num ritmo quase frenético e às vezes chegava a postar dois ou três textos num só dia no blogue, principalmente em dia de chuva.

Aliás, nos dias de chuva também não atirava bolinhas pros cachorros.

É bem provável que isso tudo estivesse relacionado, mas preferi não pensar sobre o assunto e usar o que me restava de energia para continuar fodendo os bagos do Demônio.

Um dia, meu amigo mandou um e-mail com uma única palavra: PARA, assim mesmo, em letras maiúsculas.

Ele devia ter dito isso há duas ou três semanas. Agora não dava pra parar sem concluir aquilo tudo. Não fazia a mínima ideia do que exatamente precisava ser concluído. Mas tinha certeza de que isso era extremamente necessário.

A gente não chuta os bagos do Demônio e simplesmente vira as costas.



(CONTINUAÇÃO , CLIQUE EM "POSTAGENS MAIS ANTIGAS")



sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

“CHUTE PRIMEIRO, ACERTE NOS BAGOS, NÃO HESITE, CHUTE JÁ!" (1ª temporada, episódio 07)

- E aí, quando vai sair?

Demorei para reconhecer a voz da mulher do outro lado da linha. Percebi então que era a repórter daquele site alternativo que tinha me ligado muitos meses atrás e me deixando meio assustado com o fato de ela saber que eu havia sido o ghost writer da porra do “Muito Além do Mar Vermelho.”

- Se você é tão bem informada já devia saber que eu não vou escrever a continuação daquele troço.

- Que troço e que continuação?

- A continuação do “Muito Além do Mar Vermelho”.

- Ah, você ia escrever uma continuação, é?

- Não ia nem vou. Não quero mais saber dessas paranoias bíblicas.

- Nem eu. Na verdade, eu estava querendo saber quando você vai lançar o teu livro?
Adicionar legenda
- Que livro?

- O “Chutando o Demônio”

- É “Escrachando o Demônio com um Chute nos Bagos”.

- Que seja, mas quando vai sair?

- Quem disse que vai sair alguma coisa?

- Aquele teu amigo meio maluco. A gente tomou um porre num bar e ele me contou tudo. Inclusive sugeriu que a gente, eu e ele, montasse um esquema de divulgação multimidiático.

- Filho da puta!

- Quem?

- Esse meu amigo. Era um assunto particular, muito particular.

- Bom, agora eu já sei. Quando você pretende lançar?

- Preciso concluir a coisa.

- Concluir o quê?

- Aquilo tudo que eu disse. Precisa de uma conclusão, mas não sei como fazer isso.

- Que tal você terminar com a frase: “E ficamos por aqui, por enquanto?”

- Não é má ideia.

- Então faz isso. Depois te ligo pra gente combinar o resto.

- Que resto?

- Teu amigo te explica. Tchau!

Achei a ideia de “e ficamos por aqui, por enquanto” muito boa.

Para algumas pessoas, aquilo, na cabeça delas, ia realmente concluir tudo. Para outras, não ia concluir porra nenhuma.

De qualquer maneira, achei um final perfeito para “Escrachando o Demônio com um Chute nos Bagos”.

Surgiu de novo aquela sensação de atirar uma pedra na vitrine apenas para ouvir o vidro se estilhaçando.

Postei a frase no blogue, razoavelmente afastada do resto do texto.

E, mais embaixo, coloquei: “Até a próxima, ou não.”

Mandei um e-mail pro meu amigo dizendo: “PAREI. MANDA VER.”

Mandar ver o que eu não fazia a mínima ideia.

Mas estava feito.

Não queria mais ter que pensar nos bagos do Demônio por um bom tempo. E isso em deu uma incrível sensação de alegria e liberdade.

Fui dar uma volta fora da cabana e, adivinhem, estava chovendo.

Tirei a roupa e fiquei debaixo da chuva até sentir frio.

Tudo o que eu queria agora era um banho quente.

No dia seguinte, bem cedo, tentei acessar o blogue, mas só encontrei uma página em cinza bem claro.

Embaixo da tela, no lado esquerdo, um discreto texto em itálico e letras minúsculas: “aguardem o livro ‘Escrachando o Demônio com um Chute nos Bagos’...vendas em breve, somente pela internet.”
Retomei a prática de jogar bolinhas pra meus cachorros. No tempo livre, comecei a fazer desenhos de verdade nas paredes da minha caverna.


Tempos depois, recebi um pacote pelos Correios. Uma caixa parda, mais ou menos retangular.
Assinei o papel que o carteiro me deu. E entrei.

“Escrachando o Demônio com um Chute nos Bagos” finalmente virara um livro
.
No lado esquerdo da capa, de cor quase tão parda quando a do pacote dos Correios, uma inscrição em letras azuis minúsculas grifadas: “não se defenda, chute primeiro, acerte nos bagos, não hesite, chute já!”

Dentro do pacote, um bilhete de meu amigo: “Marketing pesado. Chutando bagos em todas as direções. Dentro de alguns meses, explode. Você vai viajar pra caralho. Agenda de workshops sendo preparada. Tem gente que já tá prevendo que vai virar roteiro. Quem diria?”

Amassei o papel, guardei o cheque no bolso do roupão e voltei a atirar bolinhas pros cachorros.

Que porra tinha acontecido com aquela merda que eu tinha escrito?

Não tive coragem de abrir o livro. Já estava escuro e nem eu e nem os cachorros conseguíamos enxergar as bolinhas direito.

Voltei pra casa e joguei o livro sobre a mesa da cozinha com o cheque sobre ele.

Peguei o celular e mandei uma mensagem pra meu amigo: “Se você der o endereço da minha casa pra mais alguém, corto sua garganta!”



terça-feira, 5 de janeiro de 2016

- PRAZER, MEU NOME É SPEED. (1ª temporada, episódio 08)

Parecia um terremoto, tudo na casa começou a vibrar.

Quando consegui levantar e fui até a janela, vi um helicóptero estacionado no gramado.

Pedi pra minha mulher ficar na cama, enquanto ia lá fora saber que diabos estava acontecendo.

Ao me aproximar do helicóptero, cujas hélices ainda giravam bem devagar, o piloto já estava fora do aparelho, sem capacete, me estendendo a mão.

- Prazer, meu nome é, Speed. Vim pegar o senhor. Espero não ter me atrasado. O tempo tá meio ruim pra aqueles lados.


- Você vai me levar exatamente pra onde Speed?

- Pro galpão. Fica a uns 250 quilômetros daqui. Mas o tempo melhorou e está ficando bem limpo. Vai ser bem rápido, uma boa viagem, eu garanto.

- E por que vamos até esse galpão?

- Pro pessoal filmar. Está tudo preparado há dias.

Perguntei a Speed se ele não queria entrar e tomar um café, convite que  aceitou prontamente. 

Quando entrei na cozinha, minha mulher já tinha colocado água para ferver pro café e, sentada na mesa, manuseava o livro pardo, com o cheque jogado ao lado.

Apresentei os dois e comecei a procurar o celular, até que desisti e decidi pedir o celular de minha mulher. Liguei pra mim e escutei o toque que vinha de dentro do banheiro.

Fui até lá, fechei a porta, sentei na privada e apertei a foto idiota de meu amigo na minha lista de contatos.

Ele atendeu rápido, como se estivesse dormindo com o celular debaixo do travesseiro.

- Que merda é essa?, perguntei. 

- Ah, é você? Então, ia te avisar com mais antecedência, mas tá tudo acontecendo tá rápido que esqueci.

- O que esse psicopata do Speed tá fazendo com aquele helicóptero no meu gramado?

- Ele vai te trazer.

- Trazer aonde?

- No galpão, quer dizer, a gente transformou o galpão numa espécie de estúdio pra você gravar as chamadas.

- Chamadas de quê, puta que pariu?

- Pro lançamento do livro. Agora vai vender não só na internet, mas em todas as livrarias também. Vamos colocar os vídeos on line e na TV a cabo também. Legal, né?

- Mas, na hipótese de eu gravar os vídeos, vou dizer o quê?

- Anunciar que o “Escrachando o Demônio” vai estar à disposição de quem quiser comprar. Ah, já fechamos com uma livraria em Montevidéu e outra em Buenos Aires. Já tem um cara fazendo a tradução. Esquemão, né?

- Eu não vou mostrar minha cara, nem fodendo.

- Então, já tem um esquema. Você vai virar meio escritor fantasma, ninguém vai saber direito quem você é, se você existe mesmo ou se é tudo golpe publicitário. Por isso, você vai aparecer disfarçado, com uma iluminação tosca só revelando tua silhueta e partes do teu rosto de vez em quando.

- Disfarçado de quê? Homem Aranha ou o Coringa?

- Não seria má ideia, mas a princípio bolamos um lance diferente. Sabe aqueles caras do Blues Brothers?

- Eu não vou me vestir que nem aqueles caras. Vão me reconhecer fácil.

- Claro que não. Até porque a gente ia ter que pagar muita grana pelos direitos autorais. Você só vai usar óculos escuros, com um chapéu de gangster em cima de um lenço com as cores da bandeira da Jamaica, tipo Keith Richards. Ninguém vai te reconhecer. Vai ser assim também nas palestras pra divulgar o livro.

- Que palestras?

- Pega a porra do helicóptero que eu te explico melhor aqui, ao vivo. Você vai entender tudo.

- E aquele cheque?

- Que cheque?

- O que veio no pacote com o livro.

- Ah, é um pagamento adiantado das vendas on line. Mas te garanto que vai ultrapassar bastante aquele valor, quando os vídeos começarem a viralizar.


- Cara, eu não vou fazer bosta nenhuma disso.

- Olha, faz assim. Pro Speed não perder a viagem (ele é um cara muito ocupado e caro), vem com ele até aqui e a gente conversa melhor. Faz tempo que a gente não se encontra pessoalmente, né?

- Você também tá nesse tal galpão?

- Tô morando aqui.

E desligou.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

AS CARTAS DO CORINGA (1ª temporada, episódio 09)

Às vezes, fazemos coisas sem a menor lógica e ficamos nos perguntando pelo resto da vida por que diabos as fizemos.

Já dentro do helicóptero com Speed me contando do tempo em que carregava pasta de cocaína para ser processada nos laboratórios de umas fazendas de uns políticos famosos, me desliguei do papo e comecei a lembrar de como meu amigo
sonhava em ser empresário de uma banda de rock and roll de sucesso.

Tentou várias vezes, mas nenhuma das bandas que ele escolheu deu certo. Daí, após a sua primeira reabilitação pelo consumo desenfreado de anfetaminas e cocaína, virou editor de livros de autoajuda e acabou se dando bem.

Mas, no fundo, acho que ele nunca abandonou totalmente seu sonho de manager de uma banda de rock.

Passou-me pela mente que ele tivesse abandonado os remédios com prescrição que tomava desde seu último surto e tivesse voltado a usar as drogas ilegais, algumas bem novas, aliás, e com efeitos bem diversos das que usávamos e abusávamos nos tempos antigos.

Isso talvez tivesse provocado em sua cabeça avariada a ideia de que, já que não havia conseguido ser um empresário de sucesso do meio musical, me transformaria agora em um superstar sei lá de que, já que nunca tinha sido roqueiro, muito menos escritor de livros de autoajuda.

Resolvi deixar de conversar comigo mesmo e voltei a prestar atenção às históricas “épicas” de Speed, inclusive aquela que estava contando no momento sobre o dia em que conheceu Pablo Escobar.

Enfim, decidi descobrir o que realmente estava acontecendo com meu amigo. Afinal, era o único que havia restado dos tempos, bem, daqueles tempos.

Talvez ele fosse um elo perdido que eu necessitada juntar à corrente da minha existência. E, de qualquer forma, os cheques que ele garantiu que começariam a chegar me interessavam muito.
Nunca havia visto o tal galpão antes, mas, com certeza, ele realmente tinha sido transformado num estúdio de gravação de vídeo e, quem sabe, até de som.

Ou talvez, analisando melhor, aquilo parecesse mais um “centro de operações” escondido no meio da selva.

Quando entrei, uma equipe de várias pessoas andava de um lado para o outro, preparando isto ou aquilo, ou checando se isto ou aquilo estava funcionando mesmo.
Voltei a conversar comigo mesmo e me perguntei aonde meu amigo conseguia arrumar dinheiro para suas empreitadas malucas sem nunca ter sido achado morto numa vala.

Assim que me viu, veio me dar um longo abraço e disse a todos em volta: “Esse é o cara!”

Depois, sem me dar chance de respirar, informou que, pensando melhor, havia descartado a ideia de eu aparecer nos vídeos só com óculos escuros e chapéu sob um lenço com as cores da Jamaica. Descartou também a ideia do Homem Aranha, mas tinha passado a noite toda acordado pensando na possibilidade do Coringa.

Claro, isso envolveria gastos com direitos autorais altos e uma negociação complicada com os gringos de alto escalão. De repente, teve o que chamou de “revelação” e lembrou dos políticos para quem Speed transportava pasta de cocaína para ser processada nos laboratórios clandestinos enrustidos em suas fazendas nada clandestinas.

Embora Speed tivesse abandonado o negócio, já que ficou muito marcado e poderia virar presunto em um acidental acidente aéreo com seu helicóptero, o esquema de processamento de pasta não só prosseguia e inclusive tinha se expandido, incluindo agora redutos no Paraguai, Colômbia, Ilhas Virgens e Afeganistão (nesse último destino, era óbvio que estavam se preparando para entrar pesado no ramo da heroína).

Como disse, Speed estava fora, mas, como o assunto, na época, foi totalmente abafado por toda a mídia, devido ao poder dos políticos brasileiros envolvidos, não custava nada reativar alguns contatos que passariam a sugerir que mais “gente graúda” também estava interessada em ser sócio no esquema.

A proposta dessa “gente graúda” ávida a explorar um novo mercado era bem simples e muitos chamariam simplesmente de chantagem: ou o grupo original concordava com a sociedade, ou essa “gente graúda” tinha meios mais do que suficientes de fazer a história toda vazar na mídia, nacional e internacional.

Como um voto de confiançae “boa-vontade” na nova sociedade, os “donos” do negócio teriam que depositar quantias significativas em paraísos fiscais, em nome de empresas que seriam devidamente listadas e que, todos sabiam, lidavam com tráfico de armas e de mulheres da Europa Oriental.


Mas de onde afinal sairia o dinheiro para pagar os direitos de uso das imagens de super heróis em quadrinhos nos vídeos de divulgação do “Escrachando o Demônio’?