Claro
que toda a popularidade em torno do que eu escrevia e dizia inflou meu ego, a
ponto de achar ter encontrado minha verdadeira missão: escrever livros malucos
de autoajuda que, ao invés de aliviar a alma das pessoas, criava ainda mais
dúvidas em suas cabeças. Uma ideia que, certamente, o Demônio acharia genial.
Contudo,
por que me sentia infeliz e perdido, sentado naquela caverna que tantas vezes
antes me mostrou o caminho a seguir e os passos a dar?
Eu
e minha mulher conversamos bastante sobre o rumo que as coisas haviam tomado,
concluindo que só tínhamos duas alternativas: gastar o dinheiro ganho com o
projeto do “Escrachando” procurando um lugar ainda mais afastado ainda para
viver ou começarmos a cuidar melhor do local onde vivíamos e que, exceto por
meu amigo e pelo piloto Speed, ninguém sabia aonde ficava.
Por
um misto de preguiça e praticidade, foi fácil nos decidirmos pela segunda
opção.
De
qualquer forma, eu sentia que era necessário, primeiro, dar um final decente a
toda essa história de chutes nos bagos, uma espécie de satisfação a todas
aquelas pessoas que haviam levado a sério a armação arquitetada por meu amigo.
Se
simplesmente deixássemos tudo como estava, o mito do “profeta superstar”
acabaria crescendo ainda mais, tornando-se, quem sabe, mais pernicioso para as
pessoas do que a farsa sobre o pastor prodígio e seus diálogos mudos com o
Espírito Santo, e eu não sabia se conseguiria viver convivendo com uma fraude
que eu ajudara a criar e me beneficiara dela.
Por
isso, meu amigo ficou definitivamente surpreso quando ouviu minha voz de novo
no seu celular. Mais confuso ainda deve ter se sentido quando lhe disse que
havia tido uma ótima ideia para dar um gran finale para a epopeia do nosso
“profeta psicopata”.
E
qual seria essa ótima ideia, ele perguntou, começando a gaguejar do outro lado
da linha.
-
Nós vamos sumir com ele.
-
Matá-lo? Isso daria um bom marketing, ajudando a amenizar as dívidas pelos
contratos quebrados.
-
Não vamos matá-lo. Vamos sumir com ele. Anunciar que ele decidiu se recolher
definitivamente em um pequeno povoado tibetano, para escrever sua autobiografia
e uma versão simplificada do Livro Tibetano dos Mortos.
-
Antes de partir nessa missão, porém, ele vai realizar dois últimos seminários,
que darão às pessoas talvez a última chance de vê-lo pregando ao vivo.
-
Esses workshops, além de serem realizado em lugares bem amplos, talvez até
estádios, seriam também registrados em DVDs, vendidos em uma caixa contendo
todos os vídeos de suas outras palestras, uma transcrição misteriosamente
descoberta sobre o workshop do Coringa e uma edição de luxo do “Escrachando o
Demônio com um Chute nos Bagos”, repleta de fotos inéditas de todos esses
eventos.
-
Bem, é melhor do que sair de cena sem dar satisfação nenhuma. Além disso, a
venda dos ingressos e da caixa ajudaria a saldar as dívidas com as multas
contratuais e ainda deve dar um lucrinho. Mas o mais interessante é que
deixamos a “porta aberta” para um futuro retorno, com a perspectiva de lançar
sua autobiografia e a versão popular do Livro dos Mortos, avaliou meu amigo.
-
Bom, você organiza aí as coisas e vai me dando os detalhes. Ah, no último
workshop vou vestido de astronauta.
-
E na primeira?
-
Ainda estou pensando.
-
Como andam as coisas?, perguntei a meu amigo depois de três semanas.
-
Estão indo bem. O primeiro estádio tem cerca de 40 mil lugares. Mais da metade
dos ingressos já foi vendida via internet. Estamos promovendo nas redes sociais,
TVs, jornais e cartazes de rua. Já escolheu seu personagem?
-
Já.
-
Quem?
-
Stephen Hawking!
-
Quem?
-
Stephen Hawking, o físico na cadeira de rodas.
-
Você ficou maluco?
-
Não, veja bem, faz sentido. O Hawking imobilizado, na cadeira vai fazer um
contraponto com o pastor mirim que sofreu o AVC, lembra?. Só que as pessoas não
vão precisar dos pastores para traduzir o que o Espírito Santos vai dizer. O
público vai poder ouvir o Hawking através dos aparelhos de som. Sacou?
-
Às vezes acho que você é mais insano do que eu. Isso vai exigir uma puta
infraestrutura. Não sei se vai dar certo.
-
Olha, esses problemas é você que resolve. Me liga quando estiver tudo pronto
pra gente ensaiar.
Quando
fizemos o primeiro ensaio, fiquei realmente puto pela ideia que tive, já que
deu um trabalho imenso aprender a me movimentar com a cadeira de rodas mecânica
e muito difícil falar através do microfone preso no meu paletó. O pior mesmo
foi a questão da saída após o final do workshop.
O pessoal montou tipo uma
passarela pela qual eu era empurrado por duas garotas vestidas de fadas até
dentro da entrada de um dos vestiários. Uma vez lá dentro, minha mulher tinha
menos de cinco minutos pra tirar minha roupa e remover a maquiagem.
Passamos
quatro dias ensaiando, entre notícias de que os ingressos já estavam esgotados.
Ah,
e havia ainda o problema dos tradutores, já que a palestra seria feita em
português, inglês e francês.